quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Família e comércio: alguma relação?

A beleza da comunhão não deve ser anunciada com o estilo da autoridade, mas com o da liberdade.
Por Andrea Grillo*
Entre as surpreendentes experiências resultantes da viagem apostólica a Cuba e aos EUA, pudemos descobrir muitas coisas da força da "retórica" de Francisco. Os seus discursos são caracterizados por um grande poder de imagens, nas quais a fé e a cultura encontram uma forma para dialogar, ora seriamente, ora ironicamente, ora de modo "alto" e ora de modo "baixo".
Muitos podem ser os exemplos e, talvez, para compreendê-los seria preciso lembrar com quanto cuidado Jorge Mario Bergoglio estudou e frequentou os clássicos da literatura e colaborou com J. L. Borges. Mas basta citar um exemplo.
No discurso aos bispos no Seminário St. Charles da Filadélfia, Francisco propôs uma "longa semelhança" para explicar de que modo as mudanças sociais – e comerciais – mudaram o modo de conceber os laços familiares.
Eis o texto integral dessa longa passagem, incluindo também as palavras ditas "de improviso":
Naturalmente, o nosso modo de compreender, modelado pela integração entre a forma eclesial da fé e a experiência conjugal da graça, abençoada pelo matrimônio, não deve nos fazer esquecer a transformação do contexto histórico, que incide na cultura social – e lamentavelmente também jurídica – dos vínculos familiares e que envolve a todos nós, sejamos crentes ou não crentes. O cristão não é um 'ser imune' às mudanças do seu tempo, e neste mundo concreto, com suas múltiplas problemáticas e possibilidades, é onde se deve viver, crer e anunciar.
Até pouco tempo atrás, vivíamos em um contexto social em que a afinidade entre a instituição civil e o sacramento cristão era forte e compartilhada, eles coincidiam substancialmente e se sustentavam mutuamente. Já não é mais assim. Se eu tivesse que descrever a situação atual, tomaria duas imagens próprias das nossas sociedades. Por um lado, os conhecidos armazéns, pequenos negócios dos nossos bairros; por outro, os grandes supermercados ou shoppings.
Algum tempo atrás, podíamos encontrar em um mesmo comércio ou armazém todas as coisas necessárias para a vida pessoal e familiar – é certo que exposto pobremente, com poucos produtos e, portanto, com escassa possibilidade de escolha. Mas havia um vínculo pessoal entre o dono do negócio e os vizinhos que compravam. Vendia-se fiado, isto é, havia confiança, havia conhecimento, havia vizinhança. Fiávamo-nos do outro. Animávamo-nos a confiar. Em muitos lugares, esse negócio era conhecido como 'o armazém do bairro'.
Nessas últimas décadas, desenvolveu-se e ampliou-se outro tipo de negócios: os shopping centers. Grandes superfícies com um grande número de opções e oportunidades. O mundo parece ter se convertido em um grande shopping, onde a cultura adquiriu uma dinâmica competitiva. Já não se vende fiado, já não se pode fiar nos outros. Não há um vínculo pessoal, uma relação de vizinhança. A cultura atual parece estimular que as pessoas entrem na dinâmica de não se ligar a nada nem a ninguém. A não fiar, nem a se fiar. Porque o mais importante hoje parece que é ir atrás da última tendência ou da última atividade. Inclusive em nível religioso. O importante hoje parece ser determinado pelo consumo. Consumir relações, consumir amizades, consumir religiões, consumir, consumir... Não importa o custo nem as consequências. Um consumo que não gera vínculos, um consumo que vai além das relações humanas. Os vínculos são um mero 'trâmite' na satisfação das 'minhas necessidades'. O importante deixa de ser o próximo, com o seu rosto, com a sua história, com os seus afetos.
E essa conduta gera uma cultura que descarta tudo aquilo que já 'não serve' ou 'não satisfaz' os gostos do consumidor. Fizemos da nossa sociedade uma vitrine multicultural muito ampla, ligada somente aos gostos de alguns 'consumidores', e, por outro lado, são muitos – tantos! – os que 'comem as migalhas que caem da mesa de seus donos' (Mt 15, 27).
Isso gera uma ferida grande, uma ferida cultural muito grande. Atrevo-me a dizer que uma das principais pobrezas ou raízes de tantas situações contemporâneas está na solidão radical a que tantas pessoas se veem submetidas. Correndo atrás de um 'like', correndo atrás do aumento do número de 'followers' em qualquer uma das redes sociais, assim vão – assim vamos – os seres humanos na proposta oferecida por essa sociedade contemporânea. Uma solidão com medo do compromisso e em uma busca desenfreada por se sentir reconhecido.
Devemos condenar os nossos jovens por terem crescido nessa sociedade? Devemos anatematizá-los por viverem neste mundo? Eles devem escutar dos seus pastores frases como: 'Tudo no passado era melhor', 'O mundo é um desastre e, se continuar assim, não sabemos aonde vamos parar'? Isso me parece um tango argentino! Não, eu não acho que esse seja o caminho.
Nós, pastores atrás das pegadas do Pastor, estamos convidados a buscar, acompanhar, levantar, curar as feridas do nosso tempo. Olhar para a realidade com os olhos daquele que sabe que é interpelado ao movimento, à conversão pastoral. O mundo hoje nos pede e exige essa conversão pastoral. 'É vital que hoje a Igreja saia para anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo. A alegria do Evangelho é para todo o povo, não se pode excluir ninguém' (Evangelii gaudium, 23). O Evangelho não é um produto para se consumir, ele não entra nessa cultura do consumismo."
Esse longo trecho apresenta uma série de considerações muito importantes. Mas quero me deter apenas sobre uma. O "negócio" torna-se, nesse raciocínio por semelhança, um dos "lugares de compreensão da família". É evidente que, no discurso do Papa Francisco, podem-se encontrar diferentes camadas:
a) O uso "parabólico" da imagem: entrando nas dinâmicas dos diversos tipos de "negócios", entendem-se, de modo não moralista, mas realista, as novas dificuldades que os laços apreendem... do ar que respiram;
b) O gosto de mostrar surpreendentes correspondências entre as formas elementares da vida e os destinos da vocação e da fé: o primado da realidade sobre a ideia é afirmado também com essas escolhas linguísticas, que indicam um método de compreensão e uma relação viva com o real;
c) Um uso "irônico" da linguagem: se nos dispormos de modo "abstrato" diante da família, o melhor que conseguiremos dizer sobre ela é "valor inegociável". Dizendo isso, porém, fixamo-la em uma ideia. Mas essa definição se assemelha muito àquele defeito que o próprio Francisco formulou assim: "Um cristianismo que 'se faz' pouco na realidade e 'se explica' infinitamente na formação está perigosamente desproporcional. Eu diria que está em um verdadeiro círculo vicioso". Mas, para contestar esse estilo "abstrato", o caminho escolhido por Francisco não é o "teórico", mas o "irônico". Ele não usa o "negócio" como "negação da família", mas o introduz como "analogatum" para compreendê-la!
Essa passagem magistral muda tudo, embora não resolva tudo, obviamente. No entanto, muda a abordagem, prepara o encontro, induz uma escuta interessada, respeita a liberdade e anuncia a beleza da comunhão. Assume a experiência do sujeito como passagem obrigatória para acessar a tradição eclesial e para torná-la viva.
Talvez, no fundo dessas escolhas linguísticas, o magistério americano de Francisco sobre a família consiste nisto: anunciar a beleza da comunhão não com o estilo da autoridade, mas com o da liberdade. Para mostrar que, em última análise, é da autoridade da comunhão de que precisa toda liberdade para ser ela mesma!
Como nota de rodapé, é útil lembrar que o magistério de Francisco é "americano" não apenas por ter sido expressado na América, mas porque é fruto da experiência de um americano. Filho de imigrantes, como quase todos os americanos.
Blog Come Se Non, 28-09-2015.
*Andrea Grillo: teólogo italiano, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.

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