quinta-feira, 31 de agosto de 2017

A ética do dom. O gesto do profeta

domtotal.com
Defender os direitos humanos é missão profética do ser ético.
Aos 98 anos, dom José Maria Pires combateu o bom combate (1Tm 4,7) e partiu no mesmo dia de dom Luciano Almeida (2006) e dom Helder Câmara (1999).
Aos 98 anos, dom José Maria Pires combateu o bom combate (1Tm 4,7) e partiu no mesmo dia de dom Luciano Almeida (2006) e dom Helder Câmara (1999). (CNBB)
Por Élio Gasda*

Mais um profeta se foi. Aos 98 anos, dom José Maria Pires combateu o bom combate (1Tm 4,7). E no mesmo dia de dom Luciano Almeida (2006) e dom Helder Câmara (1999). Negro, participou do Concílio Vaticano II. Arcebispo de João Pessoa por 30 anos, ao renunciar, por idade, transformou-se em emérito peregrino. Esteve à frente do movimento negro no Brasil. Tinha carinho especial com os padres casados e suas famílias. Sempre defendeu a presença das mulheres na Igreja. “Pés descalços, camisa arregaçada na luta pelos pobres e alegria convicta no coração”. Uma mensagem de vida plena e conversão. Essa é a herança, o exemplo que fica de dom Zumbi, como era carinhosamente chamado. Como Jesus, se integrou ao mundo para cumprir sua missão. Num gesto ético saiu do centro e foi para a margem da sociedade, entre os pobres. Sua Páscoa nos remete a reflexão sobre a ética da regra de ouro: “Tudo que quereis que os homens vos façam, fazei-o também a eles” (Mt 7,12).

A palavra ética tem raiz grega. Ethos, originalmente refere-se ao estilo humano de habitar, arte de viver, com caráter. Traduzido ao latim como moral, recebeu o sentido de comportamento, costume, hábito. É uma ciência teórica e prática sobre a conduta humana, consciente e livre de viver no mundo com os outros. Todo ser racional, livre e autônomo pergunta pelo que deve fazer e como agir, por que escolhe tal comportamento e onde quer chegar com suas atitudes.

Você é um pai exemplar, mas na empresa é agressivo com seus subordinados ou vice-versa. Luta contra a corrupção, mas veste a camisa da CBF. Ensina seu filho a não colar na escola, mas pagou para alguém fazer sua monografia. Não se comove diante das tragédias, mas entra em depressão com a morte do seu cãozinho. A ética existe para o outro, não para você. A ética não se reduz a cumprir um conjunto de normas externas, mas é fruto de convicções pessoais, ideais e aspirações profundas. A pessoa deve ser a mesma em todas as dimensões da existência. Trate os outros como você gostaria de ser tratado! Sempre.

O núcleo da ética que corresponde ao pronome pessoal de primeira pessoa (eu) é a afirmação de si mesmo e da própria liberdade. É o sujeito da ação, que diz: “eu faço” e antes de agir diz: “eu posso” e “eu quero agir assim”. A ética começa quando, junto ao eu, aparece um tu. Então, a ética nasce no encontro com o outro. Não existe verdadeiro conhecimento do outro fora da ética (Kant). Ao reconhecer o outro me afirmo como sujeito ético. Somos conhecidos pelos nossos atos, protagonistas de nós mesmos. Nossas atitudes são nossa versão daquilo que acreditamos ser uma vida humana. “Quem sou eu?”, ou “quem eu quero ser?" a partir desta atitude? É um modo de relacionar-se com os outros estruturado em convicções, valores e princípios. O encontro entre o tu e o eu configura um nós com eles e elas e aponta o caminho da plena realização como seres humanos. A descoberta do nós me diz como agir. A realização mais efetiva do desejo humano é a relação, a vida em comum.

O eu deve abdicar de ser o centro, ir para a margem para centrar-se no outro. Diante da miséria, da fome, da nudez e da morte do outro, minha liberdade se sente culpada, passando de liberdade culpada à responsabilidade. Viver humanamente exige responsabilidade.

A regra de ouro é um padrão comum presente nas várias culturas, religiões e filosofias. O cristianismo vê em cada ser humano a imagem do próprio Deus. “Deus não faz distinção de pessoas” (At 10, 34). Todos são alguém. Esta verdade, que está no coração do Evangelho, é o ponto de partida da ética. Cristo, ao revelar a misericórdia do Pai, fez da ética um assemelhar-se ao Pai. Jesus recupera o verdadeiro sentido da ética. A resposta ao sofrimento do outro antecede qualquer obrigação religiosa ou norma moral. Iniciativa, sem esperar retribuição. Esta é a via da nossa passagem pelo mundo fazendo o bem (At 10, 38). A ética cristã não se limita a ordenar ou proibir, mas em salvar vidas, erguer humilhados. Uma ética exigente. Forte, porque forte é a resistência de uma moral de rótulos e etiquetas: bons e maus, puro e impuro, justo e pecador. “Amai-vos como eu vos amei” (Jo 13,34)! Eis a essência do cristianismo. Jesus fez a diferença na vida dos que sofrem. “Vai e tu também faze o mesmo” (Lc 10,37). Defender os direitos humanos é missão profética do ser ético. Não há mais lugar para acomodados e passivos. “Do centro para a margem!” (Dom José Maria Pires).

*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).

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