terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Sobre casar em aviões, curar e arrancar espigas no sábado

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Nessa esteira, uma das marcas da popularidade de Jesus residia nas muitas 'violações' que ele teria cometido contra a Lei
Após o casamento celebrado durante o voo, Paula Podest e Carlos Ciufffardi sorriem.
Após o casamento celebrado durante o voo, Paula Podest e Carlos Ciufffardi sorriem. (AFP)
Por Tânia da Silva Mayer*

A fama de Jesus se espalhou por toda a parte graças aos seus gestos e palavras. Num tempo carente das tecnologias de comunicação que hoje conhecemos, o Nazareno se tornou “pop” graças ao boca a boca das pessoas que iam ao encontro dele. Sem dúvidas, em pouco tempo, Jesus se tornou famoso. Fosse hoje, estamparia capas de jornais e seus feitos seriam manchetes e dariam coberturas interessantes para os telejornais. Tanto no tempo de Jesus quanto no nosso, as notícias nem sempre correspondem aos fatos. Além do mais, continuam bastante perigosos os julgamentos irrefletidos e apressados dos acontecimentos cotidianos. Desobrigados de uma leitura evangélica da vida, tais julgamentos continuam conduzindo ao calvário quem se arrisca a parecer com o Mestre de nossas vidas.

A condenação de Jesus à morte se deu muito em razão da postura que assumiu na vida. Suas ações estiveram sempre convertidas a Deus e ao próximo. A fé em Deus que ele cultivou esteve sempre atravessada pelo respeito e a promoção da vida do outro próximo. Pensar e promover a vida das pessoas que estão a sua volta é consequência da obediência ao Deus da vida, que se gloria na mais vida do ser humano. Por essa razão, torna-se inaceitável apegar-se ou afugentar-se em aspectos formalistas e exteriores para justificar a não realização de uma ação em vistas da maior qualidade da vida.

Nessa esteira, uma das marcas da popularidade de Jesus residia nas muitas “violações” que ele teria cometido contra a Lei, muitas delas ocorridas no dia de sábado. Quem não se recorda da expulsão de um espírito impuro de um homem na sinagoga (cf. Mc 1,21-28)? Ou da cura de um homem cuja mão era seca (cf. Mc 3,1-6)? Ou ainda, da não proibição aos discípulos por arrancarem espigas no dia de sábado para se alimentar? Em todas essas ocasiões Jesus chama à consciência que o Sábado é para fazer o bem e devolver a dignidade da vida (cf. Mc 3,4). Jesus, como um judeu bastante piedoso, sabe que o Sábado é o dia para estar na companhia do Senhor. Portanto, não uma mera interrupção formal das atividades, em cumprimento do mandato da Lei mosaica, mas verdadeiro usufruto da dignidade criatural na realização da vocação primeira de comunhão com o Criador. Nesse sentido, o filho do Homem é Senhor do Sábado, pois suas ações estão em vistas de corroborar a plenificação da relação entre Deus e o ser humano.

Na esteira da alegria do Evangelho, o papa Francisco, cada dia mais “pop” por causa de suas palavras e atitudes, estas que não deveriam surpreender os cristãos e as cristãs contemporâneos, assistiu ao casamento de um casal de comissários de bordo durante um voo. Tal como no tempo de Jesus, estar à frente da lei, agindo com amor e misericórdia, ainda é motivo de burburinhos e escândalos entre pessoas e setores eclesiais apegados às rubricas. Em sintonia com a Palavra que parece orientá-lo, Francisco considerou um lugar nada usual para devolver os sonhos ou encontrar-se com o desejo verdadeiro de quem espera uma oportunidade para dar outros sentidos à vida. O casamento num avião só causa conflito em quem ainda não se antecipou à lei e ao burocrático de nossa legislação canônica e nossas práticas pastorais. No mais, o Evangelho está a serviço da vida e, como afirmou Francisco em entrevista, “os sacramentos são para as pessoas” e não o contrário. Entenderam?

*Tânia da Silva Mayer é mestra e bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE); graduanda em Letras pela UFMG. Escreve às terças-feiras. E-mail: taniamayer.palavra@gmail.com.

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