sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Toque de classe

Especialistas descobriram intrigantes camadas de tinta sobrepostas em certas figuras de Da Vinci.

Por Fernando Fabbrini*
Nos bons tempos de hippie na Europa, meu amigo e mestre Francisco “Paco” Alcaraz, restaurador do Museu do Prado, contou-me uma história impressionante. Examinando alguns quadros de Leonardo Da Vinci com auxílio de luz ultravioleta, especialistas descobriram intrigantes camadas de tinta sobrepostas em certas figuras. Aprofundaram a pesquisa e desvendaram o enigma. Engenheiro, físico, matemático, filósofo, médico e anatomista, o também pintor Leonardo permitia-se uma extravagância genial. Ao conceber algumas figuras Da Vinci às vezes cismava e começava pintando os ossos da dama, do nobre ou do cavalo que esboçara. Depois, cobria o esqueleto perfeito com músculos e nervos, nas posições e flexões exatas. Prosseguia com o detalhamento da pele do personagem. Finalmente, “vestia-lhe” a roupa com texturas, dobras, sombras e luzes. Precisar, não precisava – mas ele fazia assim de vez em quando. Era só curtição.
O fazer bem feito é a área de lazer do bom profissional. É nessa praia que ele se diverte, é onde liberta seu estilo e sua criatividade para dançarem à vontade ao som de uma flauta imaginária que ele mesmo toca. Para evitar mal-entendidos, devo dizer que a virtude à qual me refiro gravita a anos-luz de distância da obsessão do indivíduo rígido, quadradão, limitado às paredes da caixinha. Também não tem nada a ver com vaidades imaturas e egos infantis. Falo de prazer e liberdade; não de dever e escravidão.
Seu Custódio, marceneiro, conversava com a madeira e escutava seus desejos antes de pegar o serrote e os formões. Alisava-a, cheirava-a, contemplava-a por algumas horas. Dependendo do tom do diálogo silencioso, soltava o veredito:
- Essa tábua quer ser banquinho de quintal – dizia sorrindo. A patroa e os clientes achavam Seu Custódio meio doido, mas ninguém ousava ironizar seu bate papo com os pinhos, mognos e sucupiras, porque o resultado era sempre fantástico.
Contaram-me também o célebre caso de um maestro de orquestra sinfônica que adiou seguidamente uma apresentação na corte holandesa por motivo gravíssimo. Seu spalla – o violinista principal – andava sofrendo de uma terrível dor de cotovelo (não se sabe se física ou sentimental) e, portanto, jamais tocaria com a alegria necessária o solo mais vibrante da partitura. O maestro pediu sinceras desculpas à Duquesa e deu de ombros. Se ela quisesse, que então esperasse a crise passar, ora bolas; paciência!
Soube ainda de um concurso que elege anualmente o melhor hotel do mundo. É um certame rigorosíssimo: os jurados passam o ano viajando incógnitos, percorrendo os hotéis pré-qualificados, provando menus, conferindo gentilezas e confortos. Como era de se esperar, são implacáveis no quesito limpeza: poeirinhas esquecidas no canto da cama e um mísero pelinho ondulado flutuando à deriva no box do banheiro são fatais. Um dos recentes hotéis vencedores ganhou por um fio – ops! – o troféu de melhor do mundo. O meio ponto decisivo da vitória sobre o segundo colocado veio de um complô curioso entre o pessoal da lavanderia e o da cozinha.  Diariamente, o chef envia à lavanderia uma relação detalhada dos ingredientes dos pratos, molhos e doces servidos no restaurante. Assim, caso o hóspede babe na gravata acidentalmente durante uma refeição, o pessoal saberá pela data do infausto evento qual o mais eficiente antídoto saponáceo para resolver o problema.
Tudo vem andando direitinho no reino da normalidade. Mas aí aparece um chato, coça a cabeça, torce o nariz e diz a frase mágica:
- Hum...! Sei lá, acho que dá pra fazer melhor.
*Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com dois livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália.

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